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terça-feira, 16 de maio de 2017

Passei o dia ouvindo o que o mar dizia....



Eu ontem passei o dia
Ouvindo o que o mar dizia.

Choramos, rimos, cantamos.

Falou-me do seu destino,
Do seu fado...

Depois, para se alegrar,
Ergueu-se, e bailando, e rindo,
Pôs-se a cantar
Um canto molhado e lindo.

O seu halito perfuma,
E o seu perfume faz mal!

Deserto de águas sem fim.

Ó sepultura da minha raça
Quando me guardas a mim?...

Ele afastou-se calado;
Eu afastei-me mais triste,
Mais doente, mais cansado...

Ao longe o Sol na agonia
De roxo as águas tingia.

«Voz do mar, misteriosa;
Voz do amor e da verdade!
- Ó voz moribunda e dôce
Da minha grande Saudade!
Voz amarga de quem fica,
Trémula voz de quem parte...»

E os poetas a cantar
São ecos da voz do mar!

António Botto, in 'Canções' 







Foto - Trindade,RJ

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Uma voz na pedra


Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que amo não sei. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

A. Ramos Rosa




Foto - Rochas na praia de Trindade,RJ

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Necessito do mar.....


Necessito do mar porque me ensina:
não sei se aprendo música ou consciência:
não sei se é onda ou onde ou ser profundo
somente rouca voz ou deslumbrante
suposição de peixes e navios.
O fato é que até quando estou dormindo
de algum modo magnético circulo
na universidade do marulho.

Não somente conchas trituradas
como se algum planeta estremecido
participara paulatina morte,
não, do fragmento reconstruo este dia,
de um cavaco de sal e estalactite
de uma colherada o deus imenso.

O que antes me ensinou eu guardo! É ar,
um incessante vento de água e areia.

Parece pouco para um homem jovem
que aqui chegou para viver seus incêndios,
e no entanto era um pulso que subia
e descia ao seu abismo,
o frio do azul que crepitava,
o desmoronamento de uma estrela,
o terno desprender-se de uma onda
desperdiçando neve com a espuma,
o poder quieto, ali, determinado
como um trono de pedra no profundo,
substituiu o lugar que acreditavam
tristeza tenaz, amontoando olvido,
bruscamente mudou minha existência:
minha adesão ao puro movimento.

Pablo Neruda









Foto - Trindade, Paraty/RJ

sexta-feira, 31 de março de 2017

E fecho a janela.....



Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz contente dá as boas noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito.
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.


 Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XLIX"
Heterónimo de Fernando Pessoa




Foto - Fazenda Morada do Castelo, Resende/RJ